quinta-feira, maio 03, 2007

Cântico Negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "Vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "Vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide!

Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "Vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!"

José Régio

4 comentários:

Marta Rocha disse...

Não tenho o hábito de fazer postas longas, prefiro longos comentários. Mas isto é José Régio e não ouso resumi-lo!

Margarida Balseiro Lopes disse...

Um dos meus preferidos. Deixo-te um outro.

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen


Beijinho*

Luis Cirilo disse...

São dois poemas lindissimos.
Por isso,cara Marta,fez bem em não resumir o de José Régio.
Fazê-lo seria desvirtua-lo.
O de Sophia,colocado pela sua amiga,é igualmente encantador.E tem muito a ver com a sua forma de estar na vida politica tanto quanto me tenho apercebido.

Bruno disse...

Que bela surpresa, ler este poema! Tive o prazer de ajudar a redigir uma moção ao Congresso de Pombal com o título "Sei que não vou por aí". Na altura o título pareceu-me interessantíssimo porque - embora não fosse esse o sentido da moção - era exactamente isso que eu sentia em relação a ambos os candidatos. Infelizmente, parece que não me enganei...

Em jeito de conclusão deixem-me dizer: que belas formadoras temos nós na JSD! Tu e a Margot citam aqui 2 grandes lições para quem queira ser militante do nosso Partido. É por isso (e não só!) que vos adoro ;)